A filosofia perene de Krishnamurti

*Por Lucas Berton

Krishnamurti (1895-1986) pode ser considerado um filósofo oriental que sintetiza brilhantemente as milenares culturas indiana e chinesa, atualizando-as para o mundo contemporâneo. A base do seu pensamento e prática é bastante semelhante ao budismo e ao taoísmo, por mais que ele negue seguir qualquer religião, liderança ou mesmo ser chamado de filósofo.

         Mesclando elementos do budismo, hinduísmo e taoísmo, ele termina por interpretar o pensamento Ocidental, excessivamente egocêntrico, respondendo às perguntas das inúmeras pessoas do mundo todo que acompanhavam suas palestras. Neste processo, ele dá as suas próprias contribuições, que consistem em perceber os problemas políticos, espirituais, morais e éticos, surgidos no século XX: consumismo, egocentrismo, desigualdades sociais, ganância pelo poder, vazio existencial, ansiedade, disputas entre sistemas, religiões organizadas, etc.

         Há um paralelo possível entre sua filosofia perene e o pensamento de Lao Tsé na seguinte afirmação, que é uma das bases da “filosofia” e da cultura Oriental: qualquer coisa que pode ser expressa, conceitualizada, explicada, nomeada, definida, não é o Tao eterno, que é inconcebível e inominável

Provavelmente é isto que Krishnamurti procura traduzir ao pensamento Ocidental e ao mundo contemporâneo com os seus recorrentes conselhos de evitar separar observador e objeto da observação, pois ambos seriam parte de um grande todo. A base da ciência e da cultura Ocidental fazem o exato oposto: conceituam, nomeiam, procuram encontrar explicações racionais que sempre terminam, de uma forma ou de outra, ignorando uma parte importante da realidade, deixando de levá-las em consideração e lhes dando uma força muito maior do que realmente tem. É difícil ou impossível trabalhar com as incógnitas inconscientes; e o método científico Ocidental ignora-as por completo. O que é um erro, para se dizer o mínimo.

         Havendo nomes, passam a existir separadamente e em oposição as coisas. Por isso, permanecendo sem desejos e expectativas — sem nomear e separar observação do observador —, tendemos a contemplar, sentir e ser o todo, sem nos deixarmos seduzir pelo ego, que, dentre outros problemas, tende a nos cegar e nos joga para essa realidade segregada em oposições artificiais. 

Tudo é o mesmo na origem. 

Esta conclusão é um resumo vulgar do que é o Tao.  Se damos nomes às coisas, objetos e entidades, então elas surgem distintas umas das outras, gerando conflitos, lutas e contradições insolucionáveis.

         Conflitos, lutas e contradições fazem parte da realidade, sendo impossível evitá-los, mas a concepção do “todo” presente no hinduísmo, budismo, taoísmo e no pensamento de Krishnamurti demonstram a importância de vê-los com equilíbrio e compaixão, procurando ver além desta realidade diminuta.

         O princípio pelo qual tudo é o mesmo é um mistério impenetrável: escuridão dentro da escuridão. Querer entender as coisas que surgem deste mistério impenetrável não seria uma atitude digna de Prometeu, um herói da mitologia grega e Ocidental, que quer roubar o fogo dos deuses para dar aos seres humanos visando iluminar a escuridão das escuridões?

 

         Quando agimos pelo não-agir (Oriente), estamos em contato com “a origem de tudo” (Tao). Quando agimos a partir de motivações egóicas (Ocidente), entramos em confronto com o real, passamos ao reino da dor, do sofrimento, nomeando e classificando. A visão egóica também é praticada no Oriente, porém, lá, por razões culturais, tende a ser mais neutralizada.

         Para a mentalidade Ocidental — em especial para aquela relacionada à psicanálise, seja a do analista ou seja das expectativas do analisado —, as várias ideias que jorram na nossa mente incontrolada são fontes de confusão e desespero, pois ela tende a sobrevalorizar os pensamentos intrusivos e, também, a não conseguir entender os conflitos nos seus processos. 

Para Krishnamurti, todo o “movimento da mente” é produto do conhecido (o que racionalizamos). Para ele, compreender as limitações deste movimento é o ponto central da meditação.

 

         Temos necessidade de meditação na vida — não da meditação repetida mecanicamente nas “academias de ioga” (ou pelos atuais gurus de internet), considerados por Krishnamurti como “estúpida”, já que considera tudo isso como auto-hipnose —, pois precisamos estar cônscios de todo o processo do viver, todo o processo das escolhas egóicas, de como as escolhas negam a liberdade, visto que a escolha é produto “do nosso desejo condicionado”, que escolhe entre “coisas nomeadas, definidas e rotuladas”, que também nos condicionam. A libertação da mente de todo condicionamento é o verdadeiro libertar-se.

         Para Krishnamurti, o processo pelo qual a mente se liberta do desejo de ser alguma coisa é sentido e visto como meditação; então, a mente se torna tranquila. Essa quietude, essa tranquilidade da mente, não é uma coisa que se possa conhecer ou experimentar sem se descondicionar a mente. Portanto, não há como meditar sem casar esta prática com um permanente descondicionamento. 

Se a meditação é apenas uma coisa “procurada” para atingir algum fim egóico, essa procura será apenas uma outra forma de auto-hipnose.

         Para Krishnamurti, se a mente puder se libertar do seu condicionamento, dos seus desejos, de todas as disciplinas, então haverá o libertar da mente do passado. No mais das vezes, os psicanalistas querem criar novas formas de condicionamento para a mente, o que só pode agravar o quadro das “doenças” e problemas que pretende combater.

         Krishnamurti sempre destaca que é importante perceber que nossa consciência está quase que totalmente ocupada por memórias e expectativas, dominando nossa mente e nos desviando a atenção plena do aqui e do agora.  Quando a mente está ocupada com coisas mortas, a mente também estará morta. E teorias, no mais das vezes, são coisas mortas.

         Portanto, meditar para Krishnamurti é estar consciente de todos os conflitos, no espelho de minhas atividades, das minhas relações, dos meus estados físicos e mentais. Meditação para ele, em síntese, é estar cônscio das atividades da mente — da mente do meditador, de como a mente se divide entre pensador e pensamentos; de como o pensador quer dominar os pensamentos, controlar, moldar e lutar contra os pensamentos.

         Para Krishnamurti, essa separação seria uma ilusão, pois pensador e pensamento são uma única e mesma coisa. Pode alguém perceber que experimentador e experiência são uma coisa só, que pensamento e pensador são um todo integral? Isso só é possível de descobrir no processo de meditação, que é único e intransferível, sendo impossível aprender por meio de mestres, gurus ou por receitas de internet; isto é: observar o funcionamento da mente.

         A meditação e o método proposto por Krishnamurti têm muito a contribuir com o pensamento Ocidental e com a psicanálise, em particular.


A visão política de Krishnamurti é um tanto controversa, mas profunda. Para ele existe um único problema político, que é instigar uma unidade humana. O nacionalismo, as religiões organizadas e as ideologias políticas promoveriam a segregação dos seres humanos. 

Mudar as nossas relações é parte fundamental no respeito desta unidade humana. Saber ouvir e ler o outro em consideração é parte fundamental na recriação permanente de conflitos e diversas formas de confusão egóica.

Para ele não existe caminho para a verdade ou para entender a realidade. A busca pela verdade ou pela compreensão do que é real precisa ser construída dia após dia. O espírito de conflito que surge da adesão a uma religião organizada, partido ou ideologia tenderia, segundo Krishnamurti, a obrigar a pessoa a assumir uma norma de valores, códigos que irá gerar polarizações inevitáveis, inócuas e destrutivas.

Olhar sem julgamento; compreender sem sentenças; não sorrir, nem chorar, mas procurar entender assimilando a experiência total. Este seria, em síntese, o caminho político proposto por Krishnamurti, às vezes implicitamente, às vezes explicitamente.

Ele abre a possibilidade de reciclar a noção de religião — tão ultrajada pelas religiões organizadas — e a própria filosofia, tirando-lhe os ídolos, gurus e templos; e demonstrando uma forma de entrar em contato com o Eterno de uma forma viva e sempre renovada, depurando-se permanentemente no enfrentamento às mortes cotidianas (sem fugir da morte ou ter garantias, como apregoam e sustentam as religiões organizadas).

Pode ser que aí esteja um caminho autêntico não apenas de ligação entre ciência, filosofia e religião, mas, sobretudo, de libertação, que precisa ser praticado por cada ser humano de forma autêntica e autônoma, enfrentando o seu próprio espelho egóico profundo, não sendo possível a repetição, mas o descobrimento do seu próprio caminho.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A liberdade em pombas

Humphry Morice

A queda do muro de Berlim na sala de casa