A queda do muro de Berlim na sala de casa
*Por Lucas Berton
Lembro-me, sobretudo, da minha infância na rua, brincando com a vizinhança, subindo em árvores — quanto mais alta, melhor (se com ameixas amarelas, como as que tinham na frente da casa da dona Lindinha, melhor ainda).
As tecnologias eram poucas e muito restritas: Atari, Super Nintendo; gravadores de fita K-7 e filmes rodados em vídeo-cassetes (todas elas vindas de fora).Eram tantas as brincadeiras de rua que não consigo lembrar: pé na lata, taco, esconde-esconde, etc. Um pouco mais para baixo da minha casa (a maior da rua, até aquele momento) estava a "oficina", onde se consertavam carros. Era um terreno quase baldio, cujos muros de entrada tinham de fronte uma carcaça de kombi, onde toda a gurizada brincava de alguma forma e os mais ousados até dormiam, se arriscando. A kombi foi esconderijo, nave espacial, confessionário, salão de festa, dormitório...
Nas noites estreladas me sentava no cordão da calçada após um futebol de dupla, para contemplar as estrelas, que me pareciam tão nítidas, maravilhosas, misteriosas. Algumas vezes ficava sentado no quintal dos fundos olhando por horas o tilintar delas em meio a noite escura, enquanto ouvia o pulsar da vizinhança e de alguns carros e ônibus que passavam pela rua de trás.
Tal como a foto de Itabira na parede de Drummond, como esta casa me fez falta! Ali acabei conhecendo e estabelecendo as dimensões de mim mesmo. Desde seus grandes paredões que serviam de blocos de sustentação para as partes mais altas do telhado, até o santo sudário que meu pai deixava exposto estendido no meio da casa. Aquelas manchas e o rosto estranho mais me atemorizavam do que me "esclareciam".
As escadas (de cenário de novela) que desciam na transversal moldadas sob trilhos de trem e levavam para o segundo andar, onde estava o escritório e o quarto do meu irmão, que o assumiu após a separação dos meus pais. O escritório, bem ao lado, era a parte que mais gostávamos, pois além da vista majestosa do quintal e da rua de trás, viajávamos por mundos fantásticos e encontrávamos razões para viver num mundo louco (como o de "pais loucos", separados e em constantes atritos).
Nesta casa tive 3 quartos, sendo o último o maior, com duas janelinhas que davam para a rua e de onde se ouvia o repetitivo barulho do vizinho do lado. Quando chovia eu podia sentir o cheiro da grama, que quase sempre me revigorava. Da janela ao lado eu podia ver a torre da centenária Igreja Santo Antônio, cuja vida religiosa contou com grande apreço e impulso por parte dos meus dois avós maternos.
Mas foi na sala entre os dois grandes blocos de concreto — a sala da lareira — que assisti numa antiga televisão cinza, da marca CCE (com aquele clássico design dos anos 80), uma reportagem quentinha saída do forno sobre a queda do muro de Berlim — que não me significou absolutamente nada na plenitude de minha meninice, mas que marcaria profundamente meu desenvolvimento intelectual posterior e, sobretudo, o signo ideológico.
Alguém já falou que o ser humano do final do século XX encontrava-se numa profunda ressaca ideológica em razão do "colapso" das utopias. A grande onda anti-comunista que reafirmaria todos os princípios do capitalismo, bem como a sua "vitória definitiva" sobre a "utopia comunista", marcaria toda a minha geração, familiares, colegas, amigos, vizinhos; e me deixaria quase que à mercê de um tsunami ideológico.
Junto com esta verdadeira ofensiva ideológica ininterrupta entre jornais, revistas, televisão, rádio, veio a reafirmação dogmática ou extremamente oportunista da esquerda brasileira e mundial. A mentalidade colonial do país — expressa pelos governos, grande mídia, escolas, igrejas — também me causava profundo desconforto e baixa auto-estima. Parecia que todo o país estava satisfeito em ser uma mísera província de segunda ordem da "civilização Ocidental" (como dizia Darcy Ribeiro), situada bem na periferia do sistema e destinada a ser isso por toda a eternidade.
Nasci e me vi gente, portanto, num período histórico de transição entre o capitalismo (e, esperamos,) o socialismo, num momento em que o velho agonizante se agarra com toda a sua força a qualquer podridão que o ajude a manter a existência; e o novo ainda é muito débil, fraco, confuso, sem crença suficiente em si mesmo. Pra piorar, o período é de derrota conjuntural e de refluxo, dado a restauração do capitalismo na ex-URSS e demais "países socialistas".
Eis me aí, numa encruzilhada histórica! Tentando achar um caminho e tal como o cineasta e comunista italiano, Paolo Pasolini, não me enquadro mais em nenhuma organização política, que como se disse antes, ou sofre de um oportunismo grosseiro ou de um dogmatismo religioso. Encontrar um caminho novo, renovar as práticas, discursos, relações e aproximações é necessário e fundamental, mas hoje muito difícil, para não dizer impossível.
Nas noites estreladas me sentava no cordão da calçada após um futebol de dupla, para contemplar as estrelas, que me pareciam tão nítidas, maravilhosas, misteriosas. Algumas vezes ficava sentado no quintal dos fundos olhando por horas o tilintar delas em meio a noite escura, enquanto ouvia o pulsar da vizinhança e de alguns carros e ônibus que passavam pela rua de trás.
Tal como a foto de Itabira na parede de Drummond, como esta casa me fez falta! Ali acabei conhecendo e estabelecendo as dimensões de mim mesmo. Desde seus grandes paredões que serviam de blocos de sustentação para as partes mais altas do telhado, até o santo sudário que meu pai deixava exposto estendido no meio da casa. Aquelas manchas e o rosto estranho mais me atemorizavam do que me "esclareciam".
As escadas (de cenário de novela) que desciam na transversal moldadas sob trilhos de trem e levavam para o segundo andar, onde estava o escritório e o quarto do meu irmão, que o assumiu após a separação dos meus pais. O escritório, bem ao lado, era a parte que mais gostávamos, pois além da vista majestosa do quintal e da rua de trás, viajávamos por mundos fantásticos e encontrávamos razões para viver num mundo louco (como o de "pais loucos", separados e em constantes atritos).
Nesta casa tive 3 quartos, sendo o último o maior, com duas janelinhas que davam para a rua e de onde se ouvia o repetitivo barulho do vizinho do lado. Quando chovia eu podia sentir o cheiro da grama, que quase sempre me revigorava. Da janela ao lado eu podia ver a torre da centenária Igreja Santo Antônio, cuja vida religiosa contou com grande apreço e impulso por parte dos meus dois avós maternos.
Mas foi na sala entre os dois grandes blocos de concreto — a sala da lareira — que assisti numa antiga televisão cinza, da marca CCE (com aquele clássico design dos anos 80), uma reportagem quentinha saída do forno sobre a queda do muro de Berlim — que não me significou absolutamente nada na plenitude de minha meninice, mas que marcaria profundamente meu desenvolvimento intelectual posterior e, sobretudo, o signo ideológico.
Alguém já falou que o ser humano do final do século XX encontrava-se numa profunda ressaca ideológica em razão do "colapso" das utopias. A grande onda anti-comunista que reafirmaria todos os princípios do capitalismo, bem como a sua "vitória definitiva" sobre a "utopia comunista", marcaria toda a minha geração, familiares, colegas, amigos, vizinhos; e me deixaria quase que à mercê de um tsunami ideológico.
Junto com esta verdadeira ofensiva ideológica ininterrupta entre jornais, revistas, televisão, rádio, veio a reafirmação dogmática ou extremamente oportunista da esquerda brasileira e mundial. A mentalidade colonial do país — expressa pelos governos, grande mídia, escolas, igrejas — também me causava profundo desconforto e baixa auto-estima. Parecia que todo o país estava satisfeito em ser uma mísera província de segunda ordem da "civilização Ocidental" (como dizia Darcy Ribeiro), situada bem na periferia do sistema e destinada a ser isso por toda a eternidade.
Nasci e me vi gente, portanto, num período histórico de transição entre o capitalismo (e, esperamos,) o socialismo, num momento em que o velho agonizante se agarra com toda a sua força a qualquer podridão que o ajude a manter a existência; e o novo ainda é muito débil, fraco, confuso, sem crença suficiente em si mesmo. Pra piorar, o período é de derrota conjuntural e de refluxo, dado a restauração do capitalismo na ex-URSS e demais "países socialistas".
Eis me aí, numa encruzilhada histórica! Tentando achar um caminho e tal como o cineasta e comunista italiano, Paolo Pasolini, não me enquadro mais em nenhuma organização política, que como se disse antes, ou sofre de um oportunismo grosseiro ou de um dogmatismo religioso. Encontrar um caminho novo, renovar as práticas, discursos, relações e aproximações é necessário e fundamental, mas hoje muito difícil, para não dizer impossível.
Dom Quixote, que li inteiro na companhia da minha mãe, antes dela partir, me é muito importante nestes momentos. Serve como uma bússola mais segura do que o Manifesto Comunista.
Percebo claramente esta transição entre modos de produção e de sociedade (ou, pelo menos a necessidade de transição), e tento raciocinar de acordo com a dinâmica desta "longa duração", inclusive em alguns textos específicos que já escrevi; mas as perspectivas são desanimadoras, porque a esquerda (não a eleitoral, mas a sem glória e sem fama), genericamente falando, é refém de modelos e discursos ideológicos aos quais se apegam religiosamente para dar-lhes sentido às suas vidas, porém, com pouco significado concreto no sentido de tocar o cerne da vida das pessoas.
Percebo claramente esta transição entre modos de produção e de sociedade (ou, pelo menos a necessidade de transição), e tento raciocinar de acordo com a dinâmica desta "longa duração", inclusive em alguns textos específicos que já escrevi; mas as perspectivas são desanimadoras, porque a esquerda (não a eleitoral, mas a sem glória e sem fama), genericamente falando, é refém de modelos e discursos ideológicos aos quais se apegam religiosamente para dar-lhes sentido às suas vidas, porém, com pouco significado concreto no sentido de tocar o cerne da vida das pessoas.
Viagem massa pela época de ruas lúdicas, gramas, ruas, sons elétricos e vibrações entre P&B e "full colors", janelas e recintos, momentos e visões! Outro aporte às próprias mudanças! À época eu era adolescente e curtia história e anarquismo, onde uma queda da cortina de ferro representava a emergência de mais registros para oficinas com professores, como especialmente sobre a própria Revolução russa. As questões sobre democracia eram encruzilhadas evidentemente deslocadas pelas dinâmicas da cultura do capitalismo, no próprio Brasil se buscava sair de exaustivas opressões e clandestinidades pondo "óculos" nos "otimismos", crescendo com humor de costumes e sátira política como literatura regional de atualidades e algumas transversalidades que fanzines ou revistas teriam buscado capilarizar, por vezes girando o botão do volume para amplificar revoltas, mas no final dos anos 80 galera tava com circuitos próprios ou em mídia aberta de bandas reclamando de equipamentos atrasados e incompreensão da platéia, a mídia burguesa na baixa qualificação da força de trabalho no país e mistificando a queda do muro de Berlim como o fim do projeto político do PT, então uma esquerda social-democracia mais crente em democracia com várias massas e combinações chancelando isso no RS. Mesmo assim as letras dos artistas davam repiques de fôlegos para mais buscas até formarem-se coletivos, muitas vezes caracterizados como tribos urbanas, por vezes com leituras políticas mais ou menos condizentes, ou mesmo organização, informação sensível, humores nos tempos, grandes encontros, formações memoráveis, novidades, atualidades, cultivo de referenciais humanos e crenças, entendimentos e propostas ( aí com talvez não menos difícil entressafras, mesmo depois de bons montes de juntação e certa complexidade "institucional").
ResponderExcluirAgora quem não está buscando aprofundar o próprio ambientalismo é que periga parecer maluco, mas Quixote é sempre figura difícil de desgostar (por muito e profundamente que se odeie o exército de Brancaleone!). Quero ler mais Cervantes - e a tradução de Ernani Ssó.
ResponderExcluirAlguns acham que o Cinema entra prá história como arte do século XX - quando de fato ousou inovar internacionalmente e brasileiros também pretenderam aportar no desenvolvimento civilizatório com aportes bastante inspiradores mesmo se fragmentados e reduzidos nas "telinhas" de TV! Ainda assim, ou mais ainda com isso a alienação das próprias ideologias se faria sentir como tolhedora das análises e lutas populares como juvenis e operárias, de modo que as aculturações artísticas como refúgio do período e reação ao âmbito mais autoritário precisavam ser fortemente repensadas, bem como os meios e suas dinâmicas e produções. Fitas K7 poderem ser gravadas e espalhadas por quem tinha discos de fora, ou portarem mensagens verbi-vocais com capinhas artesanais, foi algo importante na capilaridade e expressão do pensamento de vários setores para além das próprias viagens a trabalho/pesquisa e/ou migratórias. A coisa de baixo para cima perigava se inverter em desconsideração dos registros de cultivo das produções vinculadas com tradições ou proposições vanguardistas, populares ou elitistas, lentas lutas e/ou fulgurantes, mas nessa contra-hegemonia de tantos andares capazes de boas avaliações mas navegando pela complexidade dos panoramas rocambolescos e "sem receita" como diria um título brilhante de Zé Miguel Wisnik, professor de literatura e cancionista aportando em 2003 com um tema de História da MPB moderna série de artigos entre outros assuntos da vida e um "precisamos falar mais sobre Jorge Mautner" (que conheci em fita junto a Toquinho com afro-sambas de Vinícius presenteada por um divulgador libertário que trabalhava no Museu Hipólito onde também conhecia materiais antigos impressionantes do movimento operário anarquista e tal). O determinismo e o fatalismo não poderia prevalecer, mas os mundos elaborados de decadistas eram nossos termos comparativos entre experiências muito extremas, com algumas diversidades de que seríamos eventualmente testemunhas, senão representantes, então ficava difícil não buscar alguma combinação vocacional, estética e societária, entre estudos, reprodução societária familiar e ramos inteiros indo a falência por monopólios e malfadados planos político-econômicos, demonstrando muito dramaticamente as contradições do capitalismo "selvagem" nas representações chapa-brancas da nave-mãe platinada rede Globo, enquanto partíamos com quem tivesse um Atari para um "novo" imaginário Jim das Selvas/Indiana Jones/Tarzã de Viamão em grandes saltos e pixels nos co-educando, junto a bixaradas, para os sinais de fumaça de tempos mais e mais ferrados...