Pedraza sobre a "iniciação dionisíaca"
Essa sequência do Rafael Lopes-Pedraza em "Dioniso no Exílio" é simplesmente maravilhosa... Digitei as principais partes. Ela culmina no final com a história do Dioniso sendo emboscado por titãs, se transformando em serpente e fugindo pro mato: "Na terminologia da psicologia moderna, isto se expressaria fazendo referência a uma personalidade introvertida, capaz de retirar-se rapidamente para sua própria natureza dionisíaca, a fim de encontrar ali a proteção diante da destruição titânica".
Trecho escrito e selecionado por Mélis "Cactos de Jamblico".
"[p. 21:] O mito órfico relata que Dioniso nasceu da união de Zeus, o senhor do Olimpo, deus da luz, criador de imagens, pai jubiloso e tolerante, com sua filha Perséfone, a rainha do mundo subterrâneo, a de tornozelos bonitos, que personifica as escuras forças do invisível reino dos mortos. De modo que podemos imaginar que Dioniso é o produto de opostos sumamente complexos.
Continuando com esta imagética órfica, consideramos a sedução e desmembramento do menino Dioniso, pelas mãos dos titãs, como uma imagem arquetípica. O desmembramento é uma imagem de horror e uma metáfora conhecida da loucura: na linguagem da psiquiatria, entende-se como uma psique partida em pedaços, cindida.
É importante entender que, diante dos mitos de outros deuses do panteão grego, os de Dioniso nos movem de maneira diferente. Com Dioniso nossa imaginação se conecta imediatamente com os complexos mais arcaicos da humanidade. Em outras palavras, com ele nos adentramos em níveis mais profundos da psique...
[p. 22:] Em 'As Bacantes', como veremos mais adiante, Eurípedes nos fornece as mais cruéis e espantosas imagens de desmembramento, na cena em que Ágave despedaça seu filho Penteu...
Os estudiosos modernos têm transmitido a ideia de que o orgiástico ritual dionisíaco do esquartejamento de animais era uma representação do desmembramento do menino Dioniso pelos titãs. O mito também é entendido como uma descrição antropológica de canibalismo; neste caso, do devoramento de um deus, um tema que tem sido exaustivamente discutido pelos estudiosos das religiões. O mistério cristão da Eucaristia vem ao caso, pois nos conecta, simbolicamente, com o nível mais arcaico da psique. Assim, na imagem do desmembramento e ingestão de Dioniso, temos o encontro do mito com a religião. É provável que nesta imagem, que mescla religião e canibalismo, esteja sendo expressa uma necessidade muito íntima de humanidade. A imagem reveste-se de importância primordial, porque toca um nível que sempre estará presente na natureza humana...
[p. 24:] No contexto da evolução e pré-história do homem, podemos perceber que esses complexos estão arraigados na natureza humana e que o sonho [de canibalismo], que antes citamos, pode ser visto como um movimento de sobrevivência, graças a uma regressão psíquica que conecta o sonhador com complexos primários.
Vejo o choque do divino menino Dioniso com as forças titânicas como uma primeira iniciação no processo dionisíaco da vida, como uma 'teletai' dionisíaca ["teletai" refere-se à "mysteria" e "telein": "consumar", "celebrar", "iniciar". "Dionysoi telesthenai" significa "ser iniciado nos mistérios de Dioniso"]. Se adotamos essa perspectiva arquetípica e de iniciação, a imagem presente no mito será entendida como um drama inevitável que tem lugar na infância, no meio de todo o seu horror. Permite-nos ver e começar a aceitar o chamado 'trauma infantil' como a aparição dos titãs com o propósito de despedaçar e devorar o menino Dioniso.
De qualquer maneira, não posso imaginar uma infância sem trauma, desde o ponto de vista arquetípico que estou tratando de apresentar aqui. Recordemos que nossa visão de infância está impregnada tanto pela adoração do menino da Sagrada Família, quanto pelo paraíso moderno da Disneylândia, e isso é a concepção da infância como um período unilateralmente puro, inocente e feliz. Portanto, um enforque arquetípico sobre o trauma infantil se opõe a esta imagética tradicional e à tendência predominante, hoje em dia, de personalizar e literalizar essa mesma imagética.
[p. 25:] Se existisse uma infância sem trauma, teríamos de imaginar algo de verdadeiramente espantoso; isto é, uma alma não vacinada, sem defesas, carente de terceira dimensão e sem emoções; condição que nos levaria a pensar em termos de hebefrenia [tipo de esquizofrenia] ou de psicopatia. Por exemplo, em psicoterapia nós enfrentamos casos em que os pais ocultaram de seus filhos tudo o que se relacionava com a tragédia e a morte em suas famílias. Portanto, por não ter familiaridade com as emoções sérias e trágicas, aparece como uma consequência uma inclinação às mais peculiares e inimagináveis síndromes, inclusive a estranhas depressões e à tendência a converter-se em uma personalidade sem formas. Isto nos conduz a considerar que esta criança superprotegida que protagoniza o cenário do mundo de hoje acaba se convertendo, invariavelmente, em um psicopata presunçoso e brilhante, vazio de emoções.
Gostaria de insistir no enfoque arquetípico do trauma infantil. Para isso é necessário reconhecer que a unilateralidade de um enfoque pessoal, causalista e literalizado, tem impedido, no melhor dos casos, a visão arquetípica e histórica que poderia possibilitar uma aproximação da infância em termos de iniciação. O menino Dioniso sendo dilacerado e devorado pelos titãs pode ser visto como um modelo mítico da iniciação individual, iniciação a que está sujeito o ser humano e a qual deve sofrer em seus primeiros anos de vida.
A visão distorcida da psicologia moderna, que considera toda personalidade em função de sua infância, tem colocado uma ênfase excessiva nesta etapa. O complexo de Édipo, introduzido por Freud no começo do século, em vez de ter sido uma metáfora excelente, foi literalizado e deu lugar a um escândalo histérico. A desvalorização desta metáfora poderia ser vista como o início da distorção.
[p. 26:] Estamos seguido Dioniso como deus de uma 'teletai', de uma iniciação; um deus que permite ver a infância a partir de uma perspectiva trágica. Dentro desses termos, é meu interesse proporcionar um pouco de reflexão em um campo da psicologia moderna infestado de projeções inconscientes e de teorias sobre essa etapa da vida. De modo que tem-se negado ou reprimido o enfoque arquetípico dionisíaco da infância, com suas características de iniciação, e isso traz como consequência sua manifestação sob outros disfarces.
Não é difícil notar como o trauma infantil tem obcecado a psicologia moderna ao longo deste século e tem dado origem a teorias reducionistas e esquemáticas. Não foram abertas novas perspectivas. Nos últimos anos, o tema do trauma infantil tem sido apresentado com o nome de 'abuso infantil', o que revela claramente uma manifestação histérica coletiva, sinal de ausência de qualquer perspectiva psicológica...
[p. 27:] Na 'Ilíada', o grande poema, fonte da cultura ocidental, Homero se dirige a uma classe de guerreiros aristocráticos, imbuídos de uma atitude heroica em relação à vida, polo oposto à cultura dionisíaca, na qual não existe nenhum interesse pelos heróis. No entanto, Homero narra a história de Licurgo de um modo que torna patente a força psíquica do mito de Dioniso...
'Dioniso fugiu até encontrar refúgio sob as ondas do mar salgado, onde Tétis o acolheu em seu seio, tremendo e totalmente acovardado pela perseguição do homem.'
[p. 28:] Nesta primeira aparição de Dionísio na literatura grega, ainda sem a contaminação da elaboração do caráter religioso do mito órfico ou pela descrição que Eurípedes faz de Penteu, ao personificar a repressão de Dioniso mediante um governo titânico, podemos observar claramente as forças cegas que querem destruí-lo. No relato homérico, temos a imagem de um grande deus, fugindo das forças da destruição e refugiando-se em suas próprias emoções.
Esta narração pode servir como modelo a considerar na infância: o menino Dioniso vê como os titãs matam suas amas, como se fossem animais; muito cedo o menino tem uma experiência de terror onde vê a destruição do âmbito feminino que o contém. Seu único recurso é buscar refúgio no seio da Grande Mãe, no fundo do mar ou, em outras palavras, mover-se repressivamente até o inconsciente.
Não existe descrição mais viva do trauma arquetípico na infância do que este relato de Homero. O menino Dioniso, chorando de terror, é uma imagem de sua 'proeza' como menino divino: a expressão das emoções na tenra idade. O pranto do menino Dioniso me recorda o que um escritor católico francês, León Bloy, escreveu de como o pranto das crianças mantém o mundo em equilíbrio; do modo como uma cosmologia, uma ordem do mundo nasce a partir desse pranto. Bloy acrescenta que este pranto pertence aos mistérios das conflagrações da luz, um 'big-bang', que cria e coloca em movimento todo o cosmo psicológico. A visão poética de Bloy deixa fora as explicações causalistas e nos permite ver a criança que chora como um fator de equilíbrio para o 'Self'...
[p. 29:] A vingança de Dioniso ocorre em muitos relatos, mas o terror que os titãs provocam em Dioniso é único...
É conhecido um outro relato, em que Dioniso andava por um caminho quando, repentinamente, um grupo de titãs apareceu na sua frente. Imediatamente os titãs atacaram o deus e tentaram destruí-lo, mas Dioniso transformou-se em uma serpente e conseguiu escapar pelo matagal. No relato órfico e nas narrações homéricas, Dioniso, contudo, é um menino; mas nessa nova narração pode ser imaginado como um jovem, talvez com a aparência andrógina atribuída por Eurípedes em 'As Bacantes', mas capaz de proteger a si mesmo dos titãs. Em vez de enfrentá-los, converte-se em uma serpente e se torna invisível a seus olhos. Deste modo ele demonstra abertamente sua afinidade com Hermes. Este relato é o modelo que respalda minha ideia a respeito da obrigação que temos de proteger nosso aparato psicossomático por qualquer meio que tenhamos à nossa disposição. Eu chamaria de 'cuidar da alma', Dioniso cuidando de sua própria alma dionisíaca. Na terminologia da psicologia moderna, isto se expressaria fazendo referência a uma personalidade introvertida, capaz de retirar-se rapidamente para sua própria natureza dionisíaca, a fim de encontrar ali a proteção diante da destruição titânica".
Rafael Lopes-Pedraza em "Dioniso no Exílio".
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