Meu gato de estimação


*Por William Nunes

“O que será que acontece depois? Será que eu vou ver a minha mãe?”

Essas foram as palavras que Josefina dizia para sua filhinha Maria, de 12 anos, enquanto jazia deitada no chão frio do Hospital. A filha estava com as mãos dadas a ela desde 2 dias atrás, quando haviam chegado no local e desde então esperavam o leito médico no lotadíssimo hospital. E não era só elas, quando Maria olhava em volta, era tomada de tanto desespero que nem possuía mais lágrimas para chorar. Ao redor delas, dezenas, não, centenas de outras famílias choravam e se consolavam na fila de espera. Todas essas pessoas tinham 2 coisas em comum. Primeiro estavam doentes com a mesma doença, a chamada Covid-19, e segundo, seus nomes estavam todos numa mesma lista, a lista de espera de leitos hospitalares. Parece um nome de uma lista de execução de um regime autoritarista, talvez a lista de presos a serem enviadas para uma Gulag soviética, mas não é. São nomes, nomes sem rosto nem história, somente nomes de pessoas que brigam pelos leitos e respiradores que se tornam disponíveis nos Hospitais. Josefina era uma dessas pessoas. Ela não era a primeira na fila, tampouco era a segunda, possuía uma outra condição: pressão alta, considerada uma “comorbidade”. O que fazia ela ir para o final da fila, pois possuía menos chances de sobreviver do que outras pessoas mais saudáveis, o que no concurso da vida e da morte, era considerado o critério máximo de escolha. Mas felizmente, naquele momento nem Josefina nem Maria sabiam disso, então ficavam ali no chão. Josefina deitada, lutando por sua vida em cada encher de seus pulmões e Maria ao seu lado ajoelhada, segurando forte a sua mão e apreensiva a cada fraquejada na respiração de sua mãe. E já estavam assim a 2 longos dias, sem melhora e nem piora. Mas ao menos, o fato de não saberem o que ocorria lá longe, no centro de controle de leitos hospitalares, lhes dava esperança de que ainda conseguiriam um leito e atendimento.

Mas essa era a esperança de todos as outras dezenas e centenas de pessoas aguardando naquela situação e se tivessem sorte, algumas poucas dessas conseguiriam um leito, antes de morrerem. Mas não foi o caso de Josefina. Ela morreu, no final daquele mesmo dia. Deu uma última respirada forte e depois morreu sufocada no chão gelado. Maria ficou mais 2 horas ali, com as mãos dadas com sua mãe. Rezando para que não fosse verdade. Mas era. E demorou até uma funcionária do hospital passando correndo no eterno vaivém daquele hospital hiper sobrecarregado, praticamente uma morta viva no trabalho, há mais de 36 horas sem dormir, perceber que havia uma morta no chão do hospital. E então a retiraram dali. 

Maria retornou para casa no final do dia, seu pai estava trabalhando. Era segurança de uma loja, e naquela semana, mesmo com centenas morrendo por dia e outras centenas nafila de espera, as lojas funcionavam normalmente, afinal, o lucro não podia parar. Então ele demorou outras 3 horas até receber a notícia da morte de sua esposa. Maria sentou-se no sofá com seu gatinho de estimação, abraçou o felino como se fosse a última coisa no mundo. O gatinho, como se a entendesse, nada reclamava e aproveitava o calor humano dela. Maria não queria ver televisão, não queria ouvir que a pandemia estava passando e que todos deviam continuar trabalhando, não queria ouvir que quem reclamava era covarde, não queria ouvir que quem parava era covarde. Mas ela também não podia ficar a sós com sua mente. Ela queria esquecer, esquecer que o mundo ao seu redor estava desabando e uma parte importante de si, sua amada mãe, recém havia morrido. 

Por sorte, Maria havia ganhado de presente no seu último aniversário, antes de todo o caos começar, um violão. Não havia tido aulas, mas seu pai a havia ensinado o básico, alguns acordes e como tocar com a palheta. Ela pegou o violão e começou a tocar o que havia aprendido. Naquele instante qualquer acorde parecia bonito e um remédio para a apreensão e o peso que sentia sobre seu corpo. Ela tocava e tocava. Cada vez mais rápido e agressivamente. Era como se cortasse o ar com raiva, e no caminho encontrava as cordas. O som não era mais suave, não era mais bonito e nem agradável. Era raiva. Raiva mais crua a pura. Mas Maria foi tirada de seu transe por um som desagradável e inesperado. Uma corda havia arrebentado. E ao olhar para sua mão, percebeu que sangue escorria dos dedos. Ao segurar a palheta e bater com tanta força contra as cordas, no caminho raspara mais e mais sua pele contra as cordas. Mas ela não tinha sentido dor e somente agora, quando o sangue já escorria, a dor surgia. Mas a dor não era ruim. A dor era boa. A fazia novamente esquecer uma parte da pressão da pedra monumental que parecia estar sobre sua cabeça. 

Maria olhou para o sofá, o gatinho ainda estava ali, meio assustado com o barulho agudo perturbador da corda arrebentando, ou talvez fosse do jeito possuído que sua dona estava tocando o instrumento. Mas de qualquer forma ele ainda estava ali, somente olhando. Ela foi até ele e novamente abraçou-o. Ele somente miou, não se sabe de desagrado ou felicidade. Maria ficou ali com ele em seu colo o resto do dia, acariciando o pelo macio dele, sabia que naquele felino, naquele ser que definitivamente não era humano, ela poderia sem dúvida confiar.


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