“Não-dualismo” em James Hillman


A seguir, apresentamos um excerto do terceiro capítulo, intitulado “Polaridades em Psicologia Analítica”, do livro “Senex e Puer” de James Hillman. Seu conteúdo foi apresentado pela primeira vez no encontro de Eranos de 1967.



“A psicologia analítica, enquanto campo estruturado, baseia-se em descrições polares. A vida e o pensamento de Jung utilizam mais a polaridade do que de qualquer outra visão psicológica importante — Jung fez, claro, uso de outros modelos exploratórios da estrutura psíquica, tais como a Schichtentheorie [teoria das camadas] e um esquema hierárquico quando descreve os níveis da psique... (...) Cada um desses modelos é, porém, uma metáfora para a captura da incontrolável natureza das realidades psíquicas.

Desses modelos, o que ele mais favoreceu foi o das oposições polares. O modelo polar é básico em todas as suas principais ideias psicológicas. Deixe-nos relembrá-las resumidamente:

1. A psique é primariamente dividida em consciência e inconsciente, sendo a relação entre eles compensatória.

2. A energia da psique flui entre dois pólos, os quais podem ser genericamente qualificados por opostos.

3 As atitudes da psique (introversão e extroversão) e as quatro funções psicológicas [pensamento e sentimento, intuição e sensação] são descritas em pares de opostos.

4. O padrão instintivo de comportamento e a imagem arquetípica são extremidades polares de um espectro contínuo.

5. Existe uma recorrência de temas de polaridades tais como: logos e eros, amor e poder, ego e sombra, espírito e natureza, sexualidade e religião, racional e irracional, individual e coletivo, continente e conteúdo, bem como as noções de dois tipos de pontos de vista, o da primeira metade e o da segunda metade da vida, ‘les extrèmes se touchent’ [os extremos se encostam], etc...

6. Polaridade é fundamental para os escritos de Jung sobre a prática como uma dialética e nos seus escritos autobiográficos como, por exemplo, personalidade número um e personalidade número dois.

7. Finalmente, o grande tema dos seus últimos anos: a polaridade masculino-feminino e a sua união nas várias formas alquímicas.

Dentro disso tudo, para a psicologia os pólos primários são consciência e inconsciente. (...) Entretanto, esta polaridade primária é dada apenas como um potencial dentro do arquétipo, o qual, teoricamente, não está dissociado em pólos. O arquétipo per se é ambivalente e paradoxal, abarcando ambos, espírito e natureza, psique e matéria, consciência e inconsciente; nele, o sim e o não são um só. Não há dia nem noite, melhor dizendo, há um contínuo alvorecer. 

A inerente oposição no interior do arquétipo dissocia-se em pólos quando ele é penetrado pela consciência do ego. O dia rompe-se com o ego [the day breaks with the ego]; a noite é deixada para trás. Nossa consciência habitual diurna apreende apenas uma parte e faz dela um pólo. Para a psicologia, as bases ontológicas da polaridade encontram-se na consciência do ego. 

(...) Para toda porção de luz que fixamos fora da ambivalência arquetípica, iluminando com a vela de nosso ego um brilhante círculo de conhecimento, nós também obscurecemos o restante da sala. No mesmo momento em que acendemos a vela, criamos a "escuridão externa", como se a luz fosse um roubo da penumbra da alvorada e do crepúsculo, da paradoxal luz arquetípica. (...) O processo de criação da consciência, portanto, também cria inconsciência, ou como disse Jung quando lançou essa embaraçosa verdade aqui em Eranos: ‘Assim nós chegamos à paradoxal conclusão de que não há conteúdo consciente que não seja, de um outro modo, inconsciente.’ Não podemos falar, portanto, de um processo evolutivo de luz emergindo da escuridão, uma extensão da luz às custas da escuridão. 

A luz não é roubada do escuro. Apague a vela e o crepúsculo desponta novamente nas margens externas da sala, na qual havia antes apenas impenetráveis recessos da sombra. 

Em outras palavras, para a psicologia o fenômeno da polaridade não é arquetipicamente primário, mas uma consequência da afinidade do ego pela luz, da mesma forma que o termo 'polaridade' entrou para a linguagem ocidental com o ego cartesiano e o Iluminismo. (...) O próprio Deus, em seu primeiro julgamento de valor do universo, declara a luz como boa e, chamando-a Dia e separando-a da escuridão da Noite, deixa implícito que esta última é ruim. Desse modo estão os sinais mais e menos atrelados aos pólos primários de consciência e inconsciente. Assim, o mundo humano inicia quando valores do sentimento somam complexidade à percepção, e nós sentimos as polaridades e reconhecemos a escolha moral. Quando falamos de consciência, ainda tendemos a dizer boa ou má consciência, atribuindo, no mesmo momento, o sinal oposto ao inconsciente. Esta tendência opera em todos os pares de opostos. 

(...) Para nós, esta manhã, a tentativa de reconciliação irá pelo caminho de retorno à condição original do arquétipo, antes dele ter sido quebrado em partes e se virado contra si mesmo. 

Insisto que não podemos subestimar a importância dessa reconciliação. Isso merece todo esforço, não pelo sucesso ou pela cura que pode trazer, mas porque cada esforço nos faz cônscios da divisão e, desse modo, inicia-se a cura. A divisão em polaridades, mutuamente indiferentes ou repugnantes, lacera a alma em partes. A alma, ela mesma, encontra-se em meio a toda sorte de oposições como o "terceiro fator". Ela tem sempre existido a meio caminho entre o céu e o inferno, o espírito e a carne, o interior e o exterior, o individual e o coletivo – ou, dizendo de outra forma, essas oposições têm estado amalgamadas dentro de suas insondáveis extensões.

Da lira de Heráclito* ao espectro de Jung, a alma sustenta as polaridades em harmonia. Ela é a conexão psíquica. Porém agora, tendo o ego substituído a alma como centro da personalidade consciente, torna-se impossível sustentar a tensão. Com seu racionalismo disjuntivo ele produz divisões onde a alma dá sentimentos de conexão e unidades míticas. 

Assim, a alma vem definhando; seu sofrimento e doença refletem a condição dilacerada do arquétipo dividido, condição essa que a alma, por natureza, tem capacidade para re-ligar assim que seja permitido, pelo indivíduo, que ela retorne de seu exílio no inconsciente para seu lugar original como centro das polaridades.

Como um primeiro sinal dessa re-união podemos esperar uma nova experiência de ambivalência. A psicologia confere usualmente à ambivalência um julgamento pejorativo. Ela se encontra associada à esquizofrenia. Assim como o termo ‘estado crepuscular’, a ‘ambivalência’ tende a ser reservada apenas para uma situação de falência do ego. Mas a ambivalência é natural, como uma necessária concomitância para a ambiguidade da totalidade psíquica cuja luz encontra-se em um estado crepuscular. Nem a ambivalência, nem a consciência crepuscular são per se condições patológicas embora, como qualquer coisa psicológica, elas possam estar presentes em formas patológicas. 

Estar na ambivalência é estar onde estão o sim e o não, a luz e a escuridão, a ação correta e o erro, estritamente juntos e difíceis de distinguir. A psicologia normalmente tenta ir de encontro a essa condição através da reafirmação da consciência por decisão e diferenciação: solidificação e fortalecimento do ego; opor-se à mistura de sentimentos e à tênue luz indistinta da primeira fase da vida ou da velhice.

Porém, a ambivalência, melhor do que ser superada dessa forma, pode ser desenvolvida dentro de seus próprios princípios. Ela é um caminho em si. Assim como há um caminho de decisão, há também um caminho de ambivalência; e este caminho pode abarcar o arquétipo em sua totalidade, conduzindo-o para baixo até o nível psicóide.

A ambivalência, melhor que ser corrigida, pode ser encorajada através de um movimento de rodear os eternos e profundos paradoxos e símbolos, os quais sempre infundem sentimentos ambivalentes que dificultam a claridade e a assertividade. 

(...) Para curar, a ambivalência remove o olho com o qual nós podemos perceber o paradoxo. Enquanto postura, a ambivalência nos localiza dentro da realidade simbólica onde percebemos ambas as faces simultaneamente, até existirem como duas realidades simultaneamente. O que não está dividido não precisa ser rejuntado; assim, indo pelo caminho da ambivalência, circunscreve-se os esforços de ‘coniunctio’ do ego porque através da postura ambivalente já se está em ‘coniunctio’ como a tensão dos opostos. 

Esse caminho trabalha com a totalidade não pelas metades, mas através da totalidade desde o princípio. O caminho é lento, a ação é dificultada, é um tatear bobamente na meia-luz e no simbólico. O caminho encontra eco em muitas frases conhecidas de Lao Tzu mas, especialmente naquela que diz: ‘suavizar a luz, tornar-se um com o empoeirado mundo.’"



*No fragmento 48 de Heráclito: "Do arco [biós] o nome é vida [bíos] e a obra é morte." A madeira tensionada de uma lira produz tanto a música quanto a morte, se for um arco-e-flecha. A lira representa o encontro das polaridades.

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